sábado, 14 de julho de 2012

Necrópole


  Os sons dos ébrios ressoavam como orquestra pelas ruelas daquela cidade sem luz, gritos de volúpia e prazeres proibidos sussurravam por entre as pedras gélidas como agouros que só o insano ouve em tempos flébeis. Um amontoado de trapos transitava entre os moribundos e abstêmios que jaziam imóveis na calçada, selados em um sono cândido, os olhos cerrados em uma inocência sublime que apenas os sonhos fazem gente como aquela parecer. A sombra maciça andava em um curioso passo irregular, como que coxa, curvada sobre o peso do tempo e do manto no qual se escondia. Os lábios que um dia foram volumosos e de um rubro lascivo enegreceram como uma pétala morta e se resumiam a um fino traço débil que balbuciava desesperos, nada mais que uma velha insana. A louca da rua, como chamavam os moradores locais, uma mendiga qualquer, como pensavam os transeuntes com desagrado e desprezo.
   Ela procurava entre os rostos algum familiar com o que restava de sua consciência e de sua memória ainda latente, era pouco sã, mas o desespero a mantinha firme em sua procura infindável. "Perdera a família", assim comentavam as mulheres, aos sussurros, nas cozinhas e janelas. O que a vida lhe dera fora infortúnio, logo restava ela, insana, naquelas ruas natimortas, provavelmente horrendas e encardidas desde o primeiro tijolo. Havia dois anos que ela chegara à vizinhança, murmurando frases incoerentes, rezando para um deus qualquer e sempre fazendo o mesmo percurso. Ao que parecia procurava o filho e o marido desaparecidos, lembrava de gritos, de explosões, de um caos perturbador e de tentar manter a família unida, não dera certo. Recordava de seu filho, sorriso fácil e terno riso, e seu marido, valente e inconseqüente, “fique, eu voltarei logo, não saia daqui”, ele falara.
     Seu olhar vago esquadrinhava os rostos, minuciosamente, sempre alertas. Até que reconhece as madeixas castanho-escuras de um homem que dormia de bruços sob um manto de trapos marrons, se aproxima, na esperança de finalmente encontrá-lo, "será?" Seu coração palpita, o sangue beija-lhe a face em um acorde de alegria, um sentimento acolhedor intumesce em seu peito, estende a mão ossuda para afastar o cobertor do rosto do filho, e então seu sorriso desfalece, vê traços brutos e agressivos, mas não a singeleza como na face de seu rebento, em um eflúvio de desgosto, cega em seu ódio mudo ela caminha rapidamente em seu passo ridículo para o fim da rua, uma garrafa a atinge, xingamentos e vaias a acompanham, não se importa, continua andando sobre as pernas rígidas, uma maldita dor pungente.
   Em sua raiva nua, adentra em um campo-santo, arfando ela procura suas esperanças naquele lugar sombrio, olha ao redor com olhos faiscando, desata a procurar o nome dos familiares nas lápides, deseja estar errada, mas parecia essa sua última tentativa, estava velha e cansada e um dia cairia sobre seus joelhos doloridos, nada tinha em mente, a memória lhe traíra e sentia sua sanidade se esvaindo. Assim amanheceu e  continuara procurando, era essa sua última lembrança nítida.
   A velha louca desbravava o sepulcrário. E o jovem coveiro que ali trabalhava nada tinha a fazer a não ser se apiedar e deixá-la ficar ali, afinal, ela sequer depredava o patrimônio, ele sentia pena. Era visível que a cada dia ela enlouquecia mais, por vezes tentava correr, mancando estupidamente, e, de repente, petrificava-se, encarava a orla do bosque que cercava o cemitério e permanecia assim durante horas, como que em transe. Obcecada em sua busca recusava até a comida que o jovem lhe trazia, ela nunca olhava em seus olhos, nem ele nos dela, seu rosto estava coberto por aquele manto negro e fétido, o rapaz conseguiu observar que ela babujava enquanto murmurava aquelas palavras estranhas. Ajustava o boné cinza do uniforme e se dirigia para sua cabana.   
    Coveiro era um homem inteligente demais para estar ali, mas a vida lhe dera desventuras como dera à maioria daquela gente de cidadela, trabalhava arduamente todos os dias e como era um cemitério não muito extenso, era ele o único contratado, encarregado a fazer todas as tarefas. Cavava covas até o crepúsculo, enxugava com o dorso da mão o suor e continuava a ceifar a terra. Não era feliz, tampouco descontente, existia. Sua cabana ficava na orla do bosque, um cômodo único de cores tristes e que era constantemente invadido por ratazanas.
    Era um dia comum e o coveiro fora para o bosque, levando suas armadilhas e um pequeno punhal. Iria tentar afastar as malditas ratazanas. Velha Louca continuava no sepulcrário, por vezes esmurrando inutilmente as lápides, berrando agouros e praguejando contra desgraças, nada do que falava era inteligível, porém o jovem achou que estava segura, pois não estava correndo como antes, se dirigiu então à floresta. Ao longo do cemitério a velha cambaleava ao andar e sua insanidade então atingira o limite, ao ver uma lápide sentiu um desespero tão intenso que caiu sobre seus joelhos doloridos, uma dor dilacerante estrangulava-lhe o peito, como se a mão da morte apertasse com força seu coração, pendeu para um lado e tropeçou numa pedra, caindo, assim tudo escureceu.
  O coveiro passara a tarde no bosque e julgava ter apanhado muitas ratazanas, ainda que sentisse pena dos animais que tivera de matar (em sua defesa) e repulsa pelo sangue que impregnava suas vestes, no entando voltava contente quando avistou no portão dois oficiais de polícia. Intrigado foi lhes perguntar se desejavam alguma coisa. Os dois militares olharam-no com desprezo e uma raiva civilizadamente contida, o rapaz não entendeu tal recepção indelicada, mas não foi preciso muito tempo para desvendá-la. Um corpo jazia no chão, o amontoado de trapos, inerte. Velha Louca deitava-se sobre a vida que lhe esvaía, o sangue derramando-se como seda ao redor de sua cabeça. O jovem se aproximou e afastou de seu rosto o manto fétido e, horrorizado, reconhecera-a. Via sua mãe. As vozes dos policiais indagavam sobre o sangue em suas roupas, mas tudo era um eco, um borrão. Sua mãe, morta e solene junto ao piso. Velha Louca envolta em seu manto de desilusões, jazendo no imundo chão da necrópole, seus olhos sublimes esquadrinhando o céu, ainda a procura de um conhecido.

domingo, 8 de julho de 2012

  Morreu aos poucos, engasgado com uma palavra não dita.


sábado, 7 de julho de 2012

Bati a porta e ela riu de mim.
O Sol entrou soturno pelas frestas de suas risadas.