quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Blougo

Eu parei de postar no presente blog porque eu queria ver qual era a onda do wordpress (e também porque eu comecei esse blog com 11/12 anos), então eu fiz o tal wordpress https://criptalia.wordpress.com/. Não que alguém leia este que agora se chama ~tem mais cimento do que tijolo~ até eu me esqueci dele (esqueci a senha inclusive). Risos. Na real, tampouco o Criptalia é lido. Na verdade, blog é algo que a gente tem mais para nós mesmos, e fim. Enfim, no criptocosmo eu posto desimportâncias do tipo:

[post-it pot-pourri] não tenho certeza se em mim sintetizo o espírito do meu próprio tempo
não sei o que vem a ser isso, de fato. não estou certa da normalidade das sensações "vocês também sentem x quando y?"[gosto stranho na raiz da língua]. há dúvida sob minhas unhas. escombro escarpado. eu estou (ou estamos?) a todo momento buscando muletas nas retinas alheias. publicamente. a fotografia sempre embaçada (prazo de validade mecânico talvez a paisagem é escura demais talvez) nódulos grumícos sob a carne do esôfago. epitélio hemisférico apoteose antípoda, isso, antípoda em constante devir. muta-cionada. transgênica. a nicotina se liga às bases nitrogenadas do DNA. eu seria boa médica. O futuro é todo trêmulo e gosmento feito gelatina. Você já ouviu falar da cirurgia para epilepsia que corta o corpo caloso? [calosotomia completa] . cortar a comunicação do cérebro com ele próprio. uma cabeça com duas cabeças.  então onde é a morada do espírito? há no meu cérebro um outro alguém, com outras vontades? tenho eu sufocado a potência desse outro? vivo eu ao lado de um fantasma, nessa casa geminada coberta de ossos?



DO IT YOURSELF: FREEDOM TERRITORY (1968)






A obra, como se pode constatar vendo a imagem acima, é composta unicamente de fitas adesivas brancas coladas no chão, formando um grid retangular (posicionado de forma que não fique ortogonal a nenhuma das paredes do recinto em que se encontra). Fora do território delimitado, pode-se ver o que seria o nome da obra, e que, na realidade, atua como uma legenda, um elemento dêitico, uma definição de sentido para o próprio espaço físico demarcado. Na foto acima se destacam três objetos da cor verde, aparentemente esféricos, postos sobre os quadros do grid. Essas três pedras constituem outra obra de Antonio Dias, chamada “To the Police”, também de 1968. Vide que os “seres do mundo tridimensional” que povoam o grid são sempre substituídos/substituíveis a cada “re-ocorrência” de Do It Yourself, irei abordar com mais atenção, no presente texto, a estrutura retangular feita de fitas que é a obra em si.


Não há exatamente um motivo artístico inserido na obra, mas sim uma  visualidade herdada da cartografia, a apropriação de uma linguagem técnica geográfica. Assim, uma análise iconográfica se resume a dissecação dos únicos e principais recursos desta obra: as palavras e a malha geométrica, ambos sendo constituídos do mesmo material, a fita adesiva, a qual, ironicamente, compõe o arsenal de equipamentos que munem museus e galerias para impedir o público de chegar muito perto das obras de arte. Ao contrário de objetos artísticos intocáveis e protegidos pela preocupação com conservação e pelas muralhas de seguro, a obra Território-liberdade se deixa adentrar pelo público, ela é essencialmente bidimensional, mas projeta-se para fora de seu universo linear quando é atravessada por elementos tridimensionais. Só transcende a si mesma quando é transpassada por elementos que inicialmente não são ela própria, mas que a ressignificam. Assim, todo aquele sistema gerado pelo grid dá outro sentido ao espaço (temos que, ainda assim, indagar: as pessoas se sentem mesmo a vontade com essa possibilidade? Quais pessoas se sentem a vontade? Quais pessoas se apropriam do discurso da obra? Quem tem essa autoconfiança?).

A alegoria do grid é a sua própria potência política de discutir limites, leis, significados, fronteiras. A utilização desse recurso cartográfico denota a criação de um território no qual as leis e normas do mundo externo parecem não se aplicar. O motivo aqui manifestado, portanto, deve ser interpretado em relação ao seu espaço-tempo particular, o grid está inserido em uma composição diferente, por exemplo, da abundante orquestra pictórica de quadros renascentistas, contudo, não deixa de ter uma composição (por exemplo: a proporção e o fato de sua malha retangular não ser ortogonal às estruturas do recinto em que se insere). Eu ouso dizer que sua composição seja o ambiente em si, a própria realidade, pois o grid, além de possuir uma composição própria, gera uma (por dialogar com o entorno). Temos, enquanto fruidores, a possibilidade não só de olhar a obra, mas de adentrá-la, compô-la e, por fim, sê-la, fazer parte de um lugar no qual o mundo convencional é enigmaticamente suspenso, tornar-se membro de uma Embaixada de Lugar Nenhum. Existe aqui um terreno no qual representação da realidade e a própria realidade se misturam, essa característica evoca fortemente o texto “Do Rigor na Ciência”, de Jorge Luís Borges:

“Sobre o Rigor na Ciência…
Naquele império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do império uma província inteira. Com o tempo, estes mapas desmedidos não bastaram e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do império que tinha o tamanho do império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos dedicadas ao estudo da cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado mapa era inútil e não sem impiedade entregaram-no às inclemências do sol e dos invernos. Nos desertos do oeste perduram despedaçadas ruínas do mapa habitadas por animais e por mendigos; em todo o país não há outra relíquia das disciplinas geográficas. (Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, libro cuarto, capítulo XIV, Lérida, 1658.)”

A intersecção conceitual entre o grid de Território-liberdade e o mapa fantástico do texto de Suárez Miranda/Borges é a ideia de justapor realidade e representação. A arte agora é o espaço, o mapa agora é o terreno. O fruto do processo artístico de Antonio Dias é um Lugar que exige a ação do público, complementando-se com o ato dos fruidores, convidando-os a exercitarem a sua presença. O objeto artístico, aqui, é a potência dele mesmo, a potência que nasce de sua ausência visual, e o que é essa ausência? É a invisibilidade que alimenta o indeterminável, o imponderável, os mil universos possíveis que podem habitar aquele grid. A obra é uma grande lacuna, sedenta a ser preenchida! Peço atenção para isto: a produção de um artista gerou um espaço real, “frequentável”, “pisável”, e, além de tudo, reprodutível. Essa qualidade de reprodutibilidade de Território-liberdade dialoga com os Statements, de Lawrence Weiner, também de 1968, o qual dita uma série de propostas de ação e intervenções que podem ser realizadas por qualquer um que deseje. Assim como os Statements, a realização da ideia não está restrita a um só agente (artista), tampouco a um só espaço ou momento histórico.

Uma obra que contesta o espaço expositivo e a aura canônica dos museus é perfeitamente cabível em uma época na qual se discutia a “crise do museu”, reflexão proeminente nos anos 70. Além disso, a década de 60 foi a turbulenta época em que o Brillo Box de Andy Warhol coexistia com a produção de pinturas do expressionismo abstrato (declarado, no fim da década, como “encerrado” desde 1962, curiosamente). Do It Yourself: Freedom Territory dialoga com a land art de Robert Smithson, com a postura contestadora de Bárbara Kruger, é também visualmente semelhante à poesia concreta, e, além de tudo, insere-se no chamado programa ambiental da arte brasileira na década de 60. No entanto, embora seja inegavelmente fruto de seu tempo, Território-liberdade parece ser uma daquelas obras atemporais e “sempre atuais”, talvez pelo caráter de promover uma complexa relação com o público ao mesmo tempo que tende ao universalismo. O texto “Programa Ambiental” (1966), escrito por Hélio Oiticica, propõe refletir sobre a participação do público na obra a partir de uma perspectiva “ambiental”, atribuindo a obra de arte a tarefa de ser um “sinal no ambiente” capaz de gerar e potencializar vínculos. O artista passa a ser, então, um propositor de ação, alguém que lança, no espaço, uma estrutura capaz de mediar o ambiente em que se insere, justamente pelo fato de permitir que o público medie a si mesmo. Não há hierarquia, há horizontalidade.

Ademais, levando-se em consideração que o grid é um imagem pré-existente, ou seja, que foi apropriada de outros campos de conhecimento, a obra Do It Yourself dialoga, inclusive, com a noção de “transobjeto”, redigida também por Oiticica, que, em outubro de 1963, comentando sobre seu próprio trabalho, registra, no texto “Bólides”:

“a necessidade de dar à cor uma nova estrutura, de dar-lhe "corpo" levou-me às mais inesperadas consequências, assim como o desenvolvimento dos Bólides opacos [caixas pintadas] aos transparentes [com potes de vidro], onde a cor não se apresenta nas técnicas a óleo e a cola, mas no seu estado pigmentar [...]. Aí, a cuba de vidro que contém a cor poderia ser chamada de objeto pré-moldado, visto já estar pronta de antemão. O que faço ao transformá-lo numa obra não é a simples "lirificação" do objeto, ou situá-lo fora do cotidiano, mas incorporá-lo a uma idéia, fazê-lo parte da gênese da obra, tomando ele assim um caráter transcendental, visto participar de uma idéia universal sem perder a sua estrutura anterior. Daí a designação de "transobjeto" adequada à experiência.”

A transformação do grid em objeto de arte aproveita o repertório do público. É provável que os frequentadores de um espaço que tenha as marcas adesivadas no chão relacionem a obra a algo que já tenham visto, esse vínculo inicial criado com o fruidor é potencializado com as palavras “Faça você mesmo: território liberdade”. Não posso deixar de pensar, também, que esse “index” lexical ao pé da malha de adesivos remete a uma situação em que há a materialização de um texto: o emprego do discurso verbal numa arte conceitual, nesse caso, além de veicular a ideia de forma mais acessível e menos hermética, delineia um espaço impregnado de sentido, é quase como se o espaço fosse um signo vivo. Como se, ao adentrar o território-liberdade, estou me inserindo num significado.

Além disso, o grid, ao relacionar-se com o mapeamento do espaço geográfico, evoca um processo de associação por contiguidade com o mundo: a malha não se assemelha a Terra, mas indica uma ferramenta de medí-la, de representá-la. Assim, o trabalho gera uma sintaxe muito interessante, que evoca as seguintes questões: o grid é uma metonímia do mundo (sendo a parte que representa o todo)? Ou o grid é uma metáfora do mundo? (aliás, o território é pormenor ou fragmento do mundo?) De qualquer forma, o grid indica e faz referência à realidade que habita. Não é uma estrutura que busca se isolar do mundo, pelo contrário, torna-se um lugar para que se reflita sobre este mundo. Ao permanecer dentro do grid, reflito se eu mesma não poderia me aproveitar daquelas palavras permissivas e fazer o que eu bem entendesse naquele espaço. Ou seja, a obra nos faz refletir sobre poder e não poder, sobre a legislação e seus problemas morais, sobre as sanções normalizadoras da sociedade, sobre os paradoxos que a arte gera. E qual o paradoxo? Bem, teoricamente, aquela era para ser uma zona livre, contudo, se eu começasse a agir inadequadamente naquele território (ou instalasse uma arte de minha autoria no espaço), as convenções e o código moral iriam negligenciar qualquer demarcação de fita adesiva que houvesse no chão e me censurariam.


A Ficção do Espaço

“O último pedaço da Terra não reivindicado por uma nação-Estado foi devorado em 1899. O nosso século é o primeiro sem terra incógnita, sem fronteiras. Nacionalidade é o princÌpio mais importante do conceito de "governo" - nenhuma ponta de rocha no Mar do Sul pode ficar em aberto, nem um vale remoto, sequer a lua ou os planetas. Essa é a apoteose do "gangsterismo territorial". Nenhum centímetro quadrado da Terra está livre da polícia ou dos impostos... em teoria. O "mapa" é uma malha política abstrata, uma proibição gigantesca imposta pela cenoura/cacetete condicionante do Estado "Especializado", até que para a maioria de nós o mapa se torne o território - não mais a "Ilha da Tartaruga", mas os "Estados Unidos". E ainda assim o mapa continua sendo uma abstração, porque não pode cobrir a Terra com a precisão 1:1. Dentro das complexidades fractais da geografia atual, o mapa pode detectar apenas malhas dimensionais. Imensidões embutidas e escondidas escapam da fita métrica. O mapa não é exato, o mapa não pode ser exato. A Revolução fechou-se, mas a possibilidade do levante está aberta. Por ora, concentramos nossas forças em "irrupções" temporárias, evitando enredamentos com "soluções permanentes". O mapa está fechado, mas a zona autônoma está aberta. Metaforicamente, ela se desdobra por dentro das dimensões fractais invisíveis à cartografia do Controle. E aqui podemos apresentar o conceito de psicotopologia (e psicotopografia) como uma "ciência" alternativa àquela da pesquisa e criação de mapas e "imperialismo psíquico" do Estado. Apenas a psicotopografia é capaz de desenhar mapas da realidade em escala 1:1, porque apenas a mente humana tem a complexidade suficiente para modelar o real. Mas um mapa 1:1 não pode "controlar" seu território, porque é completamente idêntico a esse território. Ele pode ser usado apenas para sugerir ou, de certo modo, indicar através de gestos algumas características.”

Esse trecho foi retirado do livro “T.A.Z. - Zona Autônoma Temporária”, de Hakim Bey (pseudônimo de Peter Lamborn Wilson), publicado em 1991. No livro, Bey discute a sociedade técnico-científica, a hegemonia do discurso imperialista, o domínio do território pelas nações-Estado e os veículos da informação, sempre adotando uma postura combativa frente o domínio de sistemas “oficiais”. Essa postura indica também uma certa ressaca '"pós-histórica"', a náusea frente às narrativas protagonistas, atitude que vai de encontro a ideia de que é preciso sim refutar às “oficialidades”, inclusive aquelas que nos recusamos a descartar por, ironicamente, considera-las modelos de quebra de paradigma, modelos canônicos e dogmáticos de ruptura (curioso) que almejamos reproduzir.

A argumentação de que há uma psicotopologia capaz de se aproveitar das brechas das estruturas hegemônicas para abrigar tudo aquilo que pode vir a destruir as “oficialidades” me remete à obra Do It Yourself: Freedom Territory, devido ao fato dessa obra não só debater as relações de poder dentro e fora da arte, como também literalmente promove um espaço físico que é em si uma brecha. A malha 1:1 de Território-liberdade não pressupõe o controle do território, mas sim a criação deste, e, com isso, traz a ideia do espaço como um campo de invenção, aproximando a ficção da realidade e nos forçando a pensar: por que as fronteiras entre os países não são também ficção?





___________________Bibliografia
MOTTA, Gustavo de Moura Valença. No fio da navalha - diagramas da arte brasileira: do programa ambiental à economia do modelo. 2011. Dissertação (Mestrado em Teoria, Ensino e Aprendizagem) - Escola de Comunicações e Artes, Universidad de São Paulo, São Paulo, 2011. doi:10.11606/D.27.2011.tde-13032013-143600. Acesso em: 2017-06-01.
BORGES, Jorge Luís. “Sobre o Rigor na Ciência”, in História Universal da Infâmia, trad. de José Bento, Assírio e Alvim,1982, 117.

DANTO, Arthur C. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

BELTING, Hans. O Fim da História da Arte - Uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

LOEB, Angela Varela. Os Bólides do programa ambiental de Hélio Oiticica. ARS (São Paulo),  São Paulo ,  v. 9, n. 17, p. 48-77,    2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202011000100004&lng=en&nrm=iso>. access on  02  June  2017.  http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202011000100004.

ANTONIO Dias. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa45/antonio-dias>. Acesso em: 04 de Jun. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

BEY, Hakim. T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2011.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução por Raquel Ramalhete. 34.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.