Por vezes tenho a impressão de que São Paulo (e qualquer outra cidade em constante 'crescimento') é comparável a um ermo de dunas de areia, sempre em irrefreável mutação, ao alento do curso dos ventos que montam e desmontam morros arenosos. Se no deserto é a vontade dos ventos que desenha os espaços, em São Paulo é a gentrificação.
Como já devo ter falado aqui, moro na zona central de São Paulo, sempre morei por aqui e tenho um amor muito grande pela região, contudo, ando me estressando bastante com sucessivas construções, destas que erguem edifícios-hidra-de-lerna, e dão aos meus dias um novo descolorido e uma magnífica trilha sonora: uma sinfonia estridente de desafinadas retroescavadeiras e motoniveladoras em contralto.
Erguem-se, então, imponentes prédios empresariais e desconstroem-se memórias, histórias e lembranças, a tudo isso nós damos um nome genérico: gentrificação, processo que pode ser chamado também de "desenvolvimento", mas tal termo é tão falho que não vale a pena usá-lo. "Gentrification" tem raiz no léxico "gentry", que significa "well-bred people", ou seja, gente bem nascida, aristocracia ou classe dominante. Tem origem no francês antigo "genterie". Etimologicamente, portanto, gentrificação é o processo que torna algo nobre, reservado para classes dominantes e bem nascidas (ou administrado por elas).
É o enobrecimento de uma região através de novos comércios e edifícios, fazendo também com que a população de baixa renda deixe o local. Embora não seja novidade, visto que o termo já tem significância de problematização sociológica há uns cinquenta anos, tal processo vem sendo analisado com mais frequência recentemente, em função da galopante modernização e globalização das megacidades.
A valorização gradual de uma região metropolitana resulta na potencialização dos fatores atrativos da área urbana, atraindo empresas, aumentando investimentos e, claro, seduzindo trabalhadores pelas possibilidades de prosperar com vagas de emprego e relativa qualidade de vida. É um efeito em cadeia, e paradoxalmente proporcional, vide que ao aumentar a valorização e o investimento, todos os outros efeitos subsequentes irão também aumentar: mais globalizada, mais desenvolvida, mais populosa, e, no caso brasileiro, por ter uma 'evolução' excludente, mais desigual.
Acontece que em São Paulo o tal investimento é empresarial, e, majoritariamente, de companhias privadas, fazendo com que a dinâmica de súbitas valorizações territoriais e especulação imobiliária sejam as linhas do nosso planejamento urbano, este sendo de nula eficiência, cheio de contrassensos e rabos presos: diversos partidos, para financiar propaganda política, fazem acordo com construtoras e empresas privadas, à exemplo dos infelizes casos Delta, Siemens e Alstom.
Empresas como Itaú Unibanco S.A., Construtora OAS S.A., Casa Sol Materiais para Construção de Marília LTDA, Mtm Construções, Dalcar Veículos LTDA e Caue Veículos LTDA financiam, por exemplo, o podre PSDB (embora financiamento privado seja comum a maioria dos partidos, exemplo: o Itaú parece financiar quase todos). Empresas relacionadas à construção, automóveis, fármacos e assistência médica são as que mais aparecem como doadoras a candidatos e comitês partidários (fonte: às claras). Não é tão difícil deduzir sobre corrupção/lavagem de dinheiro, o nosso planejamento urbano é um estorvo, a mobilidade e o transporte público são terríveis, a indústria farmacêutica é uma putaria e nem é preciso comentar sobre o quesito medicina. Gentrificação, logo, é um carro dirigido por várias construtoras privadas que modificam o espaço urbano ao seu bem entender. Claro, num mundo globalizado e capitalista, ter auxílio de corporações privadas é necessário para qualquer partido, e poderia ser algo que beneficiasse todos, no entanto, a realidade não é esta (nunca, obviamente). A vontade do povo não é levada em conta e, no fim das contas, o que prevalece é o desejo da "gente genterie".
Em significado e interpretação evidente, gentrification é a vontade de uma minoria endinheirada suprimindo o espaço urbano. Poeticamente, é uma amnésia, a cidade como organismo pulsante perde insígnias do passado, esquece-se do que foi, transformando-se em rígidas linhas de contratos empresariais. Os espaços ganham a pompa e o glamour dos grandes edifícios vidrados e moradias de alto nível, mas perdem todo o brilho e delicadeza da história (e não me refiro à história colonizadora, por exemplo, que ergueu as construções mais antigas que temos, mas ao vínculo que pessoas desenvolvem com suas casas, refiro-me à terra, a espaços). Os antigos habitantes são marginalizados, as casas são apagadas e as lembranças, demolidas.
Gentrificação foi um dos temas discutidos na X Bienal de Arquitetura, em 2013 (juntamente com a questão da mobilidade), aparece no documentário sobre 156 Rivington Street (ABC No Rio), lampeja na singeleza da animação "Up - Altas Aventuras" e apresenta-se como um questionamento na recente exposição de Bel Falleiros, "Sobre Ruínas, Memórias e Monumentos", à mostra na Caixa Cultural São Paulo até o dia 16 de Fevereiro.
Acima: "figueira das lágrimas", de Bel Falleiros.
Abaixo: "marco zero"
"Memórias nos postais:
Esses postais recontam algumas das muitas e confusas memórias envolvendo a cidade de São Paulo. Tendo como base fotos antigas, além de alguns relatos e fatos históricos, uma camada de papel vegetal quadriculado e caneta nanquim foram usados para recontar essas memórias, através de desenhos e pequenas frases".-