sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Cidade de Areia

                                         




    Por vezes tenho a impressão de que São Paulo (e qualquer outra cidade em constante 'crescimento') é comparável a um ermo de dunas de areia, sempre em irrefreável mutação, ao alento do curso dos ventos que montam e desmontam morros arenosos. Se no deserto é a vontade dos ventos que desenha os espaços, em São Paulo é a gentrificação.
     Como já devo ter falado aqui, moro na zona central de São Paulo, sempre morei por aqui e tenho um amor muito grande pela região, contudo, ando me estressando bastante com sucessivas construções, destas que erguem edifícios-hidra-de-lerna, e dão aos meus dias um novo descolorido e uma magnífica trilha sonora: uma sinfonia estridente de desafinadas retroescavadeiras e motoniveladoras em contralto.
      Erguem-se, então, imponentes prédios empresariais e desconstroem-se memórias, histórias e lembranças, a tudo isso nós damos um nome genérico: gentrificação, processo que pode ser chamado também de "desenvolvimento", mas tal termo é tão falho que não vale a pena usá-lo. "Gentrification" tem raiz no léxico "gentry", que significa "well-bred people", ou seja, gente bem nascida, aristocracia ou classe dominante. Tem origem no francês antigo "genterie". Etimologicamente, portanto, gentrificação é o processo que torna algo nobre, reservado para classes dominantes e bem nascidas (ou administrado por elas).




   É o enobrecimento de uma região através de novos comércios e edifícios, fazendo também com que a população de baixa renda deixe o local. Embora não seja novidade, visto que o termo já tem significância de problematização sociológica há uns cinquenta anos, tal processo vem sendo analisado com mais frequência recentemente, em função da galopante modernização e globalização das megacidades.
   A valorização gradual de uma região metropolitana resulta na potencialização dos fatores atrativos da área urbana, atraindo empresas, aumentando investimentos e, claro, seduzindo trabalhadores pelas possibilidades de prosperar com vagas de emprego e relativa qualidade de vida. É um efeito em cadeia, e paradoxalmente proporcional, vide que ao aumentar a valorização e o investimento, todos os outros efeitos subsequentes irão também aumentar: mais globalizada, mais desenvolvida, mais populosa, e, no caso brasileiro, por ter uma 'evolução' excludente, mais desigual.
   Acontece que em São Paulo o tal investimento é empresarial, e, majoritariamente, de companhias privadas, fazendo com que a dinâmica de súbitas valorizações territoriais e especulação imobiliária sejam as linhas do nosso planejamento urbano, este sendo de nula eficiência, cheio de contrassensos e rabos presos: diversos partidos, para financiar propaganda política, fazem acordo com construtoras e empresas privadas, à exemplo dos infelizes casos Delta, Siemens e Alstom.




 
   Empresas como Itaú Unibanco S.A., Construtora OAS S.A., Casa Sol Materiais para Construção de Marília LTDA, Mtm Construções, Dalcar Veículos LTDA e Caue Veículos LTDA financiam, por exemplo, o podre PSDB (embora financiamento privado seja comum a maioria dos partidos, exemplo: o Itaú parece financiar quase todos). Empresas relacionadas à construção, automóveis, fármacos e assistência médica são as que mais aparecem como doadoras a candidatos e comitês partidários (fonte: às claras). Não é tão difícil deduzir sobre corrupção/lavagem de dinheiro, o nosso planejamento urbano é um estorvo, a mobilidade e o transporte público são terríveis, a indústria farmacêutica é uma putaria e nem é preciso comentar sobre o quesito medicina. Gentrificação, logo, é um carro dirigido por várias construtoras privadas que modificam o espaço urbano ao seu bem entender. Claro, num mundo globalizado e capitalista, ter auxílio de corporações privadas é necessário para qualquer partido, e poderia ser algo que beneficiasse todos, no entanto, a realidade não é esta (nunca, obviamente). A vontade do povo não é levada em conta e, no fim das contas, o que prevalece é o desejo da "gente genterie".
    Em significado e interpretação evidente, gentrification é a vontade de uma minoria endinheirada suprimindo o espaço urbano. Poeticamente, é uma amnésia, a cidade como organismo pulsante perde insígnias do passado, esquece-se do que foi, transformando-se em rígidas linhas de contratos empresariais. Os espaços ganham a pompa e o glamour dos grandes edifícios vidrados e moradias de alto nível, mas perdem todo o brilho e delicadeza da história (e não me refiro à história colonizadora, por exemplo, que ergueu as construções mais antigas que temos, mas ao vínculo que pessoas desenvolvem com suas casas, refiro-me à terra, a espaços). Os antigos habitantes são marginalizados, as casas são apagadas e as lembranças, demolidas.

                                        
 
    Gentrificação foi um dos temas discutidos na X Bienal de Arquitetura, em 2013 (juntamente com a questão da mobilidade), aparece no documentário sobre 156 Rivington Street (ABC No Rio), lampeja na singeleza da animação "Up - Altas Aventuras" e apresenta-se como um questionamento na recente exposição de Bel Falleiros, "Sobre Ruínas, Memórias e Monumentos", à mostra na Caixa Cultural São Paulo até o dia 16 de Fevereiro.
 
                                   
                                              
   
Acima: "figueira das lágrimas", de Bel Falleiros.
Abaixo: "marco zero"
             



 "Memórias nos postais:

Esses postais recontam algumas das muitas e confusas memórias envolvendo a cidade de São Paulo. Tendo como base fotos antigas, além de alguns relatos e fatos históricos, uma camada de papel vegetal quadriculado e caneta nanquim foram usados para recontar essas memórias, através de desenhos e pequenas frases". 


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3 comentários:

  1. Boa tarde, Clarissa!

    Muito interessante o conceito da gentrificação, nunca havia ouvido a respeito dele. Mas... Você não acha que isso é reclamar de barriga cheia? A Aclimação já foi por muito tempo (e ainda é!) um dos bairros mais nobres de São Paulo. Já teve o seu auge, mas ainda é um lugar de excelente qualidade. Falo isso com propriedade, moro bem próximo ao bairro e frequento a região, no Paraíso. E justamente por essa qualidade de vida que experienciamos é que há o crescimento da região, pelo desejo que urge em pessoas de outros bairros que gostariam de ter a mesma qualidade de vida. Afinal, quem não gostaria de poder caminhar todas as manhãs num parque maravilhoso como o da Aclimação? Mais para a frente volto a falar sobre essa "emigração".

    Acredito que a revitalização seja importante sim, para que a região não se torne como o centro histórico de Sampa, largado às moscas e tornando-se um reduto de prostituição e tráfico de drogas. Apesar dessa situação atual do centro, já existem projetos muito legais dos governos municipal e estadual de revitalização das construções, mantendo seus aspectos originais intactos. Não é fenomenal chegar na av. Paulista e ver a Casa das Rosas preservada? Muitos outros edifícios caminham para esse fim no centro de SP, é só questão de tempo.

    Mas sobre as novas construções, o que você acha do momento em que todos os prédios e casas antigos eram apenas projetos e ainda estavam por ser construídos? Em algum momento os terrenos tiveram que ser desapropriados, provavelmente uma pequena propriedade rural, um minifúndio familiar, que foi demolido para que os casarões dos barões do café pudessem ser construídos. E todos os cortiços que abrigavam imigrantes europeus para trabalhar em regime semi-escravocrata que foram destruídos para a construção das mesmas obras que hoje são consideradas históricas? Não há porque desmerecê-las, são um legado de uma época. Mas para que pudessem ser escritas, outra história teve que ser apagada.

    Agora... Em relação à seguinte frase: "É o enobrecimento de uma região através de novos comércios e edifícios, fazendo também com que a população de baixa renda deixe o local." Volto a falar sobre a "emigração" de pessoas de outros bairros para as regiões ditas mais nobres de SP. Isso não acontece, e se acontece é muito difícil. Tudo bem que com a ascensão da classe C, essa distância está muito menor, possibilitando inclusive o ingresso de novos moradores nos bairros mais antigos de SP. Mas muitas pessoas de baixa renda ainda vão a esses bairros sim, porque o que move e mantém os mesmos são o comércio local, que possui como grande parte dos funcionários moradores de bairros mais distantes e mais baratos de se viver. Ou seja, a população de baixa renda não deixa o local, ou se muda para lá porque está numa crescente ascensão social-econômica ou porque está trabalhando. Ou você acha que a madame quatrocentona que mora numa Rua Pedra Azul por exemplo vai levantar às 5h da madruga pra abrir a quitanda do bairro? Isso é impensável. Já há um processo de "gentrificação" nos os bairros nobres (leia-se Morumbi, Aclimação, Paraíso, Vila Mariana, Higienópolis, etc.) há tempos, digamos que desde 60 a 70 anos atrás. O que está acontecendo agora é apenas a "remodernização" do que já era considerado nobre.

    Em contradição a esta "emigração" citada anteriormente em busca de um bairro melhor, aos poucos, com o progresso que você condenou no texto, muitos bairros como o Jabaquara, Tatuapé, Santana, entre outros, antigamente vistos como periferia, local ruim para se morar e fazer qualquer negócio, se desenvolveram naturalmente, com o tempo. Isso acontece em lugares onde houver pessoas, não dá pra parar.

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  2. Olá, hm, caro "Adam Smith", obrigada por expor sua opinião. Dei exemplo da Aclimação, pois moro aqui, referindo-me às obras sucessivas, não como um processo de gentrificação em si, mas de uma realidade irrefutável sobre São Paulo, e, sim, é um bairro nobre já há um tempo, todo mundo sabe disso.
    A referência a essa região é uma questão circunstancial, se eu morasse no Higienópolis arranjaria algum exemplo pra poder introduzir o tema, ou na Lapa, teria até mais o que falar. Não é uma reclamação, é uma dissertação sobre um processo que acontece na cidade e é sim exclusivo e puramente comercial, não seja ingênuo de achar que é para o bem de todos, pois não é. Se o fosse, tal "planejamento urbano" seria de inclusão, e não de "expulsão". Infelizmente, áreas de revitalização não são nada além de locais com "a sujeira varrida pra debaixo do tapete", aconteceu isso com a cracolândia e com vários pontos do centro velho da cidade. Na gentrificação o que acontece é: calcando-se na especulação imobiliária, empresas oferecem um acordo ao morador para que deixe o local em troca de uma certa quantia, esta recompensa é insuficiente para comprar/alugar o imóvel que substituirá a antiga casa do morador, por exemplo, um condomínio de luxo, a opção que resta ao cidadão é deixar o local. O Sr. deu exemplo do higienópolis...não é um bom exemplo, pois você fala que as pessoas de baixa renda não precisam deixar o local, bem....não vejo muitas pessoas "diferenciadas" residindo lá. E, sim, em algum momento da história de SP, pessoas pobres já moraram lá, não é um bairro nobre "espontâneo". Enfim, pra poupar um pouco o meu tempo de discutir com alguém cujo nome de usuário é "Adam Smith" (francamente hein) esse vídeo explica bem todo o processo http://www.youtube.com/watch?v=mTTFZWjKeCQ.
    Á propósito, eu adoro V de Vingança, mas acho a anonymous ridiculamente estúpida, se, por um acaso, foi o senhorito que teve a infelicidade de hackear o blog e mudar meu favicon faça o favor de arranjar o que fazer e pare de encher o saco. Se não foi o sr. digníssimo Adam Smith, aceite minhas humildes desculpas.
    Beijocas ;P

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  3. Hm... Estranho, metade do meu post sumiu. Tinha mais coisa por lá... :(

    Assisti ao vídeo e mesmo não concordando com alguns pontos, entendi o que você quis dizer.

    Realmente, a revitalização de áreas sem os cuidados adequados para realocar em condições dignas pessoas que anteriormente moravam em áreas de risco ou até mesmo na rua/propriedades invadidas e empossadas, acaba gerando esse problemão que é "a sujeira varrida pra debaixo do tapete".

    Ah, não fui eu quem tentou invadir seu blog (que é do caralho, por sinal - apesar de carecer de alguns pontos conceituais no campo político - pois nos posts artísticos/culturais está de parabéns! )

    Até a próxima.

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