A alegoria do grid é a sua própria potência política de discutir limites, leis, significados, fronteiras. A utilização desse recurso cartográfico denota a criação de um território no qual as leis e normas do mundo externo parecem não se aplicar. O motivo aqui manifestado, portanto, deve ser interpretado em relação ao seu espaço-tempo particular, o grid está inserido em uma composição diferente, por exemplo, da abundante orquestra pictórica de quadros renascentistas, contudo, não deixa de ter uma composição (por exemplo: a proporção e o fato de sua malha retangular não ser ortogonal às estruturas do recinto em que se insere). Eu ouso dizer que sua composição seja o ambiente em si, a própria realidade, pois o grid, além de possuir uma composição própria, gera uma (por dialogar com o entorno). Temos, enquanto fruidores, a possibilidade não só de olhar a obra, mas de adentrá-la, compô-la e, por fim, sê-la, fazer parte de um lugar no qual o mundo convencional é enigmaticamente suspenso, tornar-se membro de uma Embaixada de Lugar Nenhum. Existe aqui um terreno no qual representação da realidade e a própria realidade se misturam, essa característica evoca fortemente o texto “Do Rigor na Ciência”, de Jorge Luís Borges:
“Sobre o Rigor na Ciência…
Naquele império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do império uma província inteira. Com o tempo, estes mapas desmedidos não bastaram e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do império que tinha o tamanho do império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos dedicadas ao estudo da cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado mapa era inútil e não sem impiedade entregaram-no às inclemências do sol e dos invernos. Nos desertos do oeste perduram despedaçadas ruínas do mapa habitadas por animais e por mendigos; em todo o país não há outra relíquia das disciplinas geográficas. (Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, libro cuarto, capítulo XIV, Lérida, 1658.)”
A intersecção conceitual entre o grid de Território-liberdade e o mapa fantástico do texto de Suárez Miranda/Borges é a ideia de justapor realidade e representação. A arte agora é o espaço, o mapa agora é o terreno. O fruto do processo artístico de Antonio Dias é um Lugar que exige a ação do público, complementando-se com o ato dos fruidores, convidando-os a exercitarem a sua presença. O objeto artístico, aqui, é a potência dele mesmo, a potência que nasce de sua ausência visual, e o que é essa ausência? É a invisibilidade que alimenta o indeterminável, o imponderável, os mil universos possíveis que podem habitar aquele grid. A obra é uma grande lacuna, sedenta a ser preenchida! Peço atenção para isto: a produção de um artista gerou um espaço real, “frequentável”, “pisável”, e, além de tudo, reprodutível. Essa qualidade de reprodutibilidade de Território-liberdade dialoga com os Statements, de Lawrence Weiner, também de 1968, o qual dita uma série de propostas de ação e intervenções que podem ser realizadas por qualquer um que deseje. Assim como os Statements, a realização da ideia não está restrita a um só agente (artista), tampouco a um só espaço ou momento histórico.
Uma obra que contesta o espaço expositivo e a aura canônica dos museus é perfeitamente cabível em uma época na qual se discutia a “crise do museu”, reflexão proeminente nos anos 70. Além disso, a década de 60 foi a turbulenta época em que o Brillo Box de Andy Warhol coexistia com a produção de pinturas do expressionismo abstrato (declarado, no fim da década, como “encerrado” desde 1962, curiosamente). Do It Yourself: Freedom Territory dialoga com a land art de Robert Smithson, com a postura contestadora de Bárbara Kruger, é também visualmente semelhante à poesia concreta, e, além de tudo, insere-se no chamado programa ambiental da arte brasileira na década de 60. No entanto, embora seja inegavelmente fruto de seu tempo, Território-liberdade parece ser uma daquelas obras atemporais e “sempre atuais”, talvez pelo caráter de promover uma complexa relação com o público ao mesmo tempo que tende ao universalismo. O texto “Programa Ambiental” (1966), escrito por Hélio Oiticica, propõe refletir sobre a participação do público na obra a partir de uma perspectiva “ambiental”, atribuindo a obra de arte a tarefa de ser um “sinal no ambiente” capaz de gerar e potencializar vínculos. O artista passa a ser, então, um propositor de ação, alguém que lança, no espaço, uma estrutura capaz de mediar o ambiente em que se insere, justamente pelo fato de permitir que o público medie a si mesmo. Não há hierarquia, há horizontalidade.
Ademais, levando-se em consideração que o grid é um imagem pré-existente, ou seja, que foi apropriada de outros campos de conhecimento, a obra Do It Yourself dialoga, inclusive, com a noção de “transobjeto”, redigida também por Oiticica, que, em outubro de 1963, comentando sobre seu próprio trabalho, registra, no texto “Bólides”:
“a necessidade de dar à cor uma nova estrutura, de dar-lhe "corpo" levou-me às mais inesperadas consequências, assim como o desenvolvimento dos Bólides opacos [caixas pintadas] aos transparentes [com potes de vidro], onde a cor não se apresenta nas técnicas a óleo e a cola, mas no seu estado pigmentar [...]. Aí, a cuba de vidro que contém a cor poderia ser chamada de objeto pré-moldado, visto já estar pronta de antemão. O que faço ao transformá-lo numa obra não é a simples "lirificação" do objeto, ou situá-lo fora do cotidiano, mas incorporá-lo a uma idéia, fazê-lo parte da gênese da obra, tomando ele assim um caráter transcendental, visto participar de uma idéia universal sem perder a sua estrutura anterior. Daí a designação de "transobjeto" adequada à experiência.”
A transformação do grid em objeto de arte aproveita o repertório do público. É provável que os frequentadores de um espaço que tenha as marcas adesivadas no chão relacionem a obra a algo que já tenham visto, esse vínculo inicial criado com o fruidor é potencializado com as palavras “Faça você mesmo: território liberdade”. Não posso deixar de pensar, também, que esse “index” lexical ao pé da malha de adesivos remete a uma situação em que há a materialização de um texto: o emprego do discurso verbal numa arte conceitual, nesse caso, além de veicular a ideia de forma mais acessível e menos hermética, delineia um espaço impregnado de sentido, é quase como se o espaço fosse um signo vivo. Como se, ao adentrar o território-liberdade, estou me inserindo num significado.
Além disso, o grid, ao relacionar-se com o mapeamento do espaço geográfico, evoca um processo de associação por contiguidade com o mundo: a malha não se assemelha a Terra, mas indica uma ferramenta de medí-la, de representá-la. Assim, o trabalho gera uma sintaxe muito interessante, que evoca as seguintes questões: o grid é uma metonímia do mundo (sendo a parte que representa o todo)? Ou o grid é uma metáfora do mundo? (aliás, o território é pormenor ou fragmento do mundo?) De qualquer forma, o grid indica e faz referência à realidade que habita. Não é uma estrutura que busca se isolar do mundo, pelo contrário, torna-se um lugar para que se reflita sobre este mundo. Ao permanecer dentro do grid, reflito se eu mesma não poderia me aproveitar daquelas palavras permissivas e fazer o que eu bem entendesse naquele espaço. Ou seja, a obra nos faz refletir sobre poder e não poder, sobre a legislação e seus problemas morais, sobre as sanções normalizadoras da sociedade, sobre os paradoxos que a arte gera. E qual o paradoxo? Bem, teoricamente, aquela era para ser uma zona livre, contudo, se eu começasse a agir inadequadamente naquele território (ou instalasse uma arte de minha autoria no espaço), as convenções e o código moral iriam negligenciar qualquer demarcação de fita adesiva que houvesse no chão e me censurariam.
A Ficção do Espaço
“O último pedaço da Terra não reivindicado por uma nação-Estado foi devorado em 1899. O nosso século é o primeiro sem terra incógnita, sem fronteiras. Nacionalidade é o princÌpio mais importante do conceito de "governo" - nenhuma ponta de rocha no Mar do Sul pode ficar em aberto, nem um vale remoto, sequer a lua ou os planetas. Essa é a apoteose do "gangsterismo territorial". Nenhum centímetro quadrado da Terra está livre da polícia ou dos impostos... em teoria. O "mapa" é uma malha política abstrata, uma proibição gigantesca imposta pela cenoura/cacetete condicionante do Estado "Especializado", até que para a maioria de nós o mapa se torne o território - não mais a "Ilha da Tartaruga", mas os "Estados Unidos". E ainda assim o mapa continua sendo uma abstração, porque não pode cobrir a Terra com a precisão 1:1. Dentro das complexidades fractais da geografia atual, o mapa pode detectar apenas malhas dimensionais. Imensidões embutidas e escondidas escapam da fita métrica. O mapa não é exato, o mapa não pode ser exato. A Revolução fechou-se, mas a possibilidade do levante está aberta. Por ora, concentramos nossas forças em "irrupções" temporárias, evitando enredamentos com "soluções permanentes". O mapa está fechado, mas a zona autônoma está aberta. Metaforicamente, ela se desdobra por dentro das dimensões fractais invisíveis à cartografia do Controle. E aqui podemos apresentar o conceito de psicotopologia (e psicotopografia) como uma "ciência" alternativa àquela da pesquisa e criação de mapas e "imperialismo psíquico" do Estado. Apenas a psicotopografia é capaz de desenhar mapas da realidade em escala 1:1, porque apenas a mente humana tem a complexidade suficiente para modelar o real. Mas um mapa 1:1 não pode "controlar" seu território, porque é completamente idêntico a esse território. Ele pode ser usado apenas para sugerir ou, de certo modo, indicar através de gestos algumas características.”
Esse trecho foi retirado do livro “T.A.Z. - Zona Autônoma Temporária”, de Hakim Bey (pseudônimo de Peter Lamborn Wilson), publicado em 1991. No livro, Bey discute a sociedade técnico-científica, a hegemonia do discurso imperialista, o domínio do território pelas nações-Estado e os veículos da informação, sempre adotando uma postura combativa frente o domínio de sistemas “oficiais”. Essa postura indica também uma certa ressaca '"pós-histórica"', a náusea frente às narrativas protagonistas, atitude que vai de encontro a ideia de que é preciso sim refutar às “oficialidades”, inclusive aquelas que nos recusamos a descartar por, ironicamente, considera-las modelos de quebra de paradigma, modelos canônicos e dogmáticos de ruptura (curioso) que almejamos reproduzir.
A argumentação de que há uma psicotopologia capaz de se aproveitar das brechas das estruturas hegemônicas para abrigar tudo aquilo que pode vir a destruir as “oficialidades” me remete à obra Do It Yourself: Freedom Territory, devido ao fato dessa obra não só debater as relações de poder dentro e fora da arte, como também literalmente promove um espaço físico que é em si uma brecha. A malha 1:1 de Território-liberdade não pressupõe o controle do território, mas sim a criação deste, e, com isso, traz a ideia do espaço como um campo de invenção, aproximando a ficção da realidade e nos forçando a pensar: por que as fronteiras entre os países não são também ficção?
___________________Bibliografia
MOTTA, Gustavo de Moura Valença. No fio da navalha - diagramas da arte brasileira: do programa ambiental à economia do modelo. 2011. Dissertação (Mestrado em Teoria, Ensino e Aprendizagem) - Escola de Comunicações e Artes, Universidad de São Paulo, São Paulo, 2011. doi:10.11606/D.27.2011.tde-13032013-143600. Acesso em: 2017-06-01.
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DANTO, Arthur C. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
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ANTONIO Dias. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa45/antonio-dias>. Acesso em: 04 de Jun. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução por Raquel Ramalhete. 34.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.