segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Trompe-l'oeil

Untitled (Marching Figures), c.1952
oil on canvas, 198 x 137 cm
The Estate of Francis Bacon

    Andei ouvindo umas músicas realmente ruins e fiquei com cara de desgosto o resto do dia, então refleti sobre a causa de toda aquela desgraça e cheguei a conclusão de que a falta de comprometimento é a culpada. O principal expoente de uma obra-prima seria o elo sentimental adjacente a ela, fornecido pelo respectivo e amado "artífice".
Creio que seja essencial um vínculo emocional com "a criatura", mas qual seria o limite?
   É crucial, para a consistência de algo, selar um pacto anímico, principalmente se tratando de arte, no entanto, do mesmo modo que a ausência deste é perturbadora a presença incorreta e fanática é pior ainda! Francamente, não consigo decidir o que é pior: Ouvir sílabas sendo repetidas sem sentido algum ou escutar NSBM*.
   O "incorreto" aqui empregado relaciona-se diretamente com fanatismo. Opiniões políticas vinculadas à produções artísticas musicais são perfeitamente aceitáveis e necessárias (O Teatro Mágico, El Efecto, Tom Zé, Titãs, Pink Floyd, Midnight Oil, Men at Work e Pearl Jam são exemplos em excelência no debate de questões de elevada relevância social) no entanto, qualquer discurso político fascista é potencialmente perigoso, visto que qualquer fanatismo pode, facilmente, se tornar segregador.
   Então não, não são os guturais que me incomodam, até porque costumo ouvir músicas que usam este recurso vocal. Superior a qualquer incômodo auditivo é a perturbação ideológica, tanto Kuduro como os discursos de Varg Vikernes são de uma inversão de valores completamente hedionda. Nesta Admirável Sociedade Visual, onde todos os cenários e conceitos têm de cobrir-se com um manto de alegrias empacotadas para atrair mínima atenção do respeitável público, vemos as noções de cultura e comprometimento desfalecerem-se gradativamente.
      
"A racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da sociedade que se autoaliena."

(A Indústria Cultural: O iluminismo como mistificação de massas; Max Horkheimer e Theodor W. Adorno)
    
   Vivemos na mais tola das ironias, e, embriagados pelo discurso pseudo-democrático, a ignorância nos cativa, seja com doces, seja com barriga vazia. Há uma cânone liberdade relativa, e, sem dúvidas, uma democracia dissimulada. O indivíduo de sucesso que detém os meios de produção ainda é o mais rico, isso é um fato indiscutível. Tais meios de produção são os necessários para produzir o que hoje é nominado como arte, e também, consequentemente, a música. Na R. Teodoro Sampaio, por exemplo, os "meios de produção" não são nada baratos, assim como os preços estabelecidos pelas mercenárias gravadoras.
    Há a questão da Internet, mas esta não excluí o caráter elitista que a música ocidentalizada (não mais só eurocêntrica, mas algo como "EUA-cêntrica) adquiriu (ou sempre teve), tornando-se mercantil, enlatada como numa linha de montagem e despiu-se de todo e qualquer valor cultural e sentimental (o tal pacto anímico mencionado no primeiro parágrafo). Por fim, somos imobilizados pela ilusão de mobilidade e neste meio hipertônico (transbordando outdoors, banners e outras mil quinquilharias marqueteiras) o indivíduo desenvolve sua personalidade plasmolizada.
    A música plástica e sua então produção massificada, mecanizada e acéfala potencializa-se ao se somar com o desejo de subjetivação desesperado do indivíduo, que na sede de agregar-se a algum grupo acaba encerrando-se em algo nocivo. No entanto não nos sublimamos para a posição de Sujeito, como deveríamos e pensávamos fazer, mas a plasmolização do indivíduo o prepara pra coisificação, sua degeneração para Objeto. A ânsia de aceitação em um grupo pode evoluir para um idolatrismo exacerbado e aí desembocamos no fanatismo. Fanatismos, vícios e excessos originam-se da fraqueza humana, de uma certa ausência e angústia.

"Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada."
(Walter Benjamin)

  Essa perda de identidade, segundo Benjamin, será devida a obstrução da experiência. Para o filósofo alemão, experiência não é apenas "verificação de um fenônimo físico" ou o fator meritocrático que consta no currículo, mas sim é a construção do indivíduo, o que irá caracterizá-lo como único porém pertencente à uma comunidade. É a transmissão de valores baseada na narrativa, que, de acordo com Benjamin, teria sido corrompida na atualidade, sendo distorcida e tendo seu valor diluido com o surgimento do rádio, da televisão, da imprensa e assim por diante.

"Com a atrofia da experiência, é a identidade de cada um que entra em crise, é a constituição de cada um como sujeito que se torna problemática, surgindo assim o terreno fértil para a alienação a que está sujeito o homem contemporâneo"
(A Criança e Seu Desenvolvimento - Sandra Maria Sawaya sobre o Conceito de experiência em Walter Benjamin- 4° Edição - Editora Cortez)

  A música tem, irrevogavelmente, um elevado potencial alienador, o qual é impulsionado se a música em questão for sintetizada e sistemática, apartada de toda e qualquer real tradição (diferente da tradição inventada, como diz E. Hobsbawm) ou significado profundo. É a música "com preço, mas sem valor." Tal produção monstruosa, abominação industrial, titã alienador, como queira chamar, distorce completamente a música regional, a identidade, por exemplo, da roda de viola. O Sertanejo Universitário inundou as mídias de tal forma que sequer lembramos que o Sertanejo de Raiz é bom, ou melhor, foi.
   Assim, com este vazio cognitivo nos cidadãos, a famosa "falta de espírito crítico", surgem coisas como as trilhões de músicas monossilábicas e idiotas. O indivíduo bestializado, logo, é preenchido com um conteúdo que se não é vazio é algo bem próximo disto. Não obstante, quando o humano plasmolizado é invadido por uma ideologia que tende ao fanatismo segregador, a necessidade de "vestir a camisa" e identificar-se é maior. De certa forma, o primeiro exemplo é a falta de vínculo com a música feita, uma certa impessoalidade, música volátil, o segundo, por sua vez, é o interesse de um grupo sobrepondo-se às perspectivas da comunidade como um todo.
    Ouço uma melódia distante ressoar, difusamente, numa tarde com perfume de sol, mas é um carro tocando funk no mais alto volume. E nos corredores de uma escola particular ou pública um bando de garotinhas chilicam ao ver a foto de um ídolo industrializado, as meninas daquele grupo histérico não se importam com a escola, não, suas cabeças servem pra pensar nas boybands, e tampouco se preocupam com a eleição que acontecerá na cidade, não se importam muito com os pais, salve quando estes dão dinheiro para o show das bandas plastificadas que tanto amam. Isso é cabresto, e nada mais. O cabresto da estupidez e do idolatrismo enjoativo...
     Então, neste picadeiro de inverdades da adorável sociedade de sorrisos dissimulados, respiramos este ar um tanto Trompe-l'oeil, lotado de mentiras e hidrocarbonetos aromáticos. E, ao pé da letra, se for andar na rua, não se esqueça: fones de ouvido ou "Pílula Vermelha"?



(*A sigla NSBM significa: National Socialist Black Metal, música que em suas letras e bandeiras defendem ideias como: Supremacia branca, Antissemitismo, Satanismo e Separatismo Racial.)

(*Trompe-l'oeil é um recurso usado na pintura capaz de enganar o olho humano, os desenhos 'trompe-l'oeil nos fazem ver imagens que não existem realmente ou dão a sensação de que uma determinada paisagem é real - aquelas famosas pinturas no asfalto de enormes buracos surreais são de gênero trompe-l'oeil, essa técnica não tem absolutamente nada a ver com Francis Bacon, apenas escolhi a pintura do artista devido sua relação com o tema 'alienação'.)


(** "Erfahrung (experiência) é o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem; o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas com o tempo. Erlebnis é a vivência do indivíduo privado, isolado, é a impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos."
Walter Benjamin: O Marxismo da Melancolia",
página 83, Leandro Konder. Fragmento também encontrado no livro A Criança e Seu Desenvolvimento; página 34; 4° Edição - Editora Cortez)

"A experiência (Erfahrung) é fruto do trabalho, a vivência (Erlebnis) é a fantasmagoria do ocioso."


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