sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Sessão Sofá de Cinema - Entre Proscênios e Ternuras

Cena do filme "Il Viaggio di Capitan Fracassa", de Ettore Scola
       Nesse friozinho repentino nada melhor que assistir uns bons filmes! Já prepare a pipoca e a coberta que a sessão é boa! Hoje a dica é em homenagem às trupes de teatro e à amizade. Aqueles que já participaram de uma peça ou se sentem envolvidos pela magia do teatro conhecem o ar delicado, brincalhão e sinestésico da Quinta Arte!
      Uma das belezas do teatro é a união. O singelo coletivismo inevitável, ainda que tenha aquelas brigas dignas de tragédia grega. A ternura abraça e abrasa o coração de todos desde o momento de conhecer um ao outro até os minutos antes da apresentação, aquela sensação de completo terror, porém também de completo amor e gratidão, simplória felicidade dos sentimentos em caos alumiado, e o dar as mãos antes da peça, como um culto ao conquistado, acalenta a alma de todos no palco ao bradarem uma prece e trovejarem em uma só voz:  Merda!
      Tal beleza aquarelada em belas alegrias é sentida pelo público, seja em uma peça cômica ou trágica, pois o resultado que se atinge é consequência da cumplicidade da trupe e da convicção com que acreditaram na peça. Então, para sentir esse brilho aureo que só o teatro tem, nada mais justo que recorrer à magnífica Sétima Arte!

 

Il Viaggio Di Capitan Fracassa (1990)


       Il Viaggio Di Capitan Fracassa (A Viagem do Capitão Tornado), um maravilhoso filme lançado em 1990 sob a maestria do esplêndido diretor italiano Ettore Scola, narra a história do último barão e falido herdeiro da família Sigognac, Jean Luc Henry Camille (Vincent Perez), que vive recluso e miserável em seu castelo juntamente de seu único e fiel criado, Pietro (Ciccio Ingrassia). Em uma noite tempestuosa, a Companhia Melpoméne & Tália de Teatro, que estava nas proximidades do castelo, vê-se impedida de prosseguir viagem, assim os esfarrapados itinerantes artistas pedem abrigo aos moradores do castelo.        
       Pietro, o leal servente, vê nesta trupe errante a oportunidade de seu jovem amo conhecer a vida bela e verdadeira e, principalmente, a chance de encontrar Luís XIII, cujo pai foi salvo pelo pai do jovem Sigognac, Henrique de Navarra. Dirigindo-se a Paris, o rapaz então iria proclamar-se como filho do salvador diante de Luís XIII, que reconheceria a nobreza de sua família e concederia sua gratidão (vulgo: grana)
       Pietro então paga uma quantia a Pulcinella (Massimo Troisi), um dos atores da trupe e narrador da história inteira, para que cuide do jovem barão durante a viagem, pois este nada sabe da vida fora do castelo, Pulcinella, contrariado, aceita a incumbência.

Além de Pulcinella, a trupe é composta pelo dramático Matamore (Jean-François Perrier), as belas Serafina (Ornella Muti), Isabella (Emmanuelle Béart) e Zerbina (Tosca D'Aquino), a objetiva Lady Leonarde (Lauretta Masiero), o garboso e empolado Leandre (Massimo Wertmüller), e o sucinto Tirano (Toni Ucci).
       E assim a história se desenrola numa divertida (porém árdua) viagem, envolvendo paixões e desilusões, mostrando as dificuldades e conflitos de um grupo de teatro sem dinheiro e esfomeado, retratando também a paupérrima Europa do século XVII. E acima de tudo, retrata o amor quase que incondicional pela arte! (Alguns personagens não irão amar da mesma forma, mas aí você tem de assistir!)
É um filme que trata essencialmente os conflitos humanos, os dilemas entre o dever e o prazer. A trajetória do jovem barão nada mais é que a representação do curso da vida humana, o abandono do estável, das paredes do castelo para lançar-se na ventura incerta e oscilante que a vida é, os desencontros, as frustrações, paixões findadas, amores impossíveis e as limitações da realidade.

      O filme encanta o espectador durante os 132 minutos de exibição, o roteiro é extremamente bem tecido, adaptado por Scola do escritor francês Téophile Gautier, os diálogos são brilhantes, acentuando críticas sobre a sociedade e a desigualdade. O humor do filme consiste nos diálogos e, principalmente, nos personagens, no entanto o roteiro inteiro é um gracejo sublime e apaixonante. Pessoalmente, amei o personagem de Massimo Troisi, morri de rir com ele!
       E, por fim, há o inegável toque italiano, dramático como só! Um filme delicado e emocionante, das lágrimas aos risos! Realmente vale a pena!

 

Micmacs À Tire-larigot (2009)

           Após o sucesso legendário de Amélie Poulain o brilhante diretor Jean-Pierre Jeunet surpreende novamente com o filme Micmacs À Tire-larigot (2009)! Mantendo a poesia característica de seus filmes, a elaborada seleção de cores, um roteiro inteligente e a sutileza dos personagens. A trilha sonora é genial também, com o velho conhecido compasso ternário acelerado, característico dos filmes franceses! Lembrando também, claro, a composição de Yann Tiersen em Amélie Poulain.
         O filme conta a trágica história de Bazil (Dany Boon), que desde a infância carregou a memória da morte de seu pai. O pai, integrante da Legião Estrangeira Francesa, devido a explosão desastrosa de uma mina terrestre, acabou falecendo. É curioso analisar os distintos sentidos que as expressões "foi morto" e "morreu" despertam, e é o que o filme irá debater ao longo da história.
         A desgraça com armas volta a se repetir! Bazil, anos após a morte do pai, estava em seu trabalho (a locadora) assistindo The Big Sleep (À Beira do Abismo-1946) numa noite pacata, quando ouviu um barulho abrupto vindo da rua, ao ir ver o que havia acontecido acabou levando um tiro na cabeça, fora uma bala perdida, mas que quase o matou.
        Para piorar, os médicos não retiram a bala de sua cabeça, o que alimenta um ponto cômico sensacional do filme, pois Bazil tem inúmeros lapsos devido a bala alojada. No entanto fomenta também seu desejo de vingança. Quando o protagonista descobre que a bala perdida e a mina terrestre que assassinara seu pai eram relacionadas à duas grandes corporações bélicas rivais que se localizavam na região periférica industrial de Paris, ambas na mesma rua, ele tenta reclamar seus direitos como vítima das armas, no entanto, não é atendido, e assim elabora uma justiça (termo mais adequado do que "vingança", pois as empresas são de fato negligentes).

Da esquerda para a direita: Fracasse (Dominique Pinon), Calculette (Marie-Julie Baup),
Tambouille (Yolande Moreau), Bazil (Dany Boon), Petit Pierre (Michel Cremades);
Placard (Jean-Pierre Marielle) e Remington (Omar Sy)
   Com a ajuda de seus amigos, coletores do ferro-velho (todos um tanto desajustados, característica que faz lembrar a trupe de Ettore Scola), Bazil consegue arquitetar um plano para punir os arrogantes empresários Fenouillet (Andre Dussolier) e Marconi (Nicolas Marie), os grandes chefões da máfia belígera e ramificada, potencialmente tentacular.
    A"trupe", leal equipe, é composta pela protetora e preocupada matriarca Tambouille (Yolande Moreau), a exata mente brilhante Calculette (Marie-Julie Baup), o brilhante inventor Petit Pierre (Michel Cremades), o impulsivo e nervoso ex-presidiário Placard (Jean-Pierre Marielle), o enérgico e cordial Remington (Omar Sy), o desvairado Fracasse (Dominique Pinon) e a louca de amores por Bazil, a contorcionista
La Môme Caoutchouc (Julie Ferrier).
       O enredo é guiado de maneira brincalhona, sutil e sensível como a aura que Jeunet costuma criar (vide Amélie e Delicatessen), contudo este longa em especial ressalta as deficiências do mundo e como estão relacionadas às redes que fomentam as guerras, e como a produção de cada bala, por exemplo, pode afetar a vida de outrém.
     No entanto, o belo contraste a esse mundo que transborda desamor é a fraternidade e ternura entre o grupo, a união que faz de vários um só, e que, em Micmacs, se volta contra as empresas bélicas. Um dos pólos de debate é a discussão da responsabilidade, se quem faz as armas é culpado pelas mortes, ou simplesmente quem executa.
     Devemos responsabilizar o fabricante ou o comprador? (Isso eu deixarei para que você conclua após assistir ao filme!haha!). Num mundo onde os valores vão se dissipando e as causalidades vão se intensificando, devido, principalmente, à globalização, que fortaleceu a ideia dos elos entre as mais distantes realidades, é preciso ter essa resposta na ponta da razão!
                                                
       Os núcleos cômicos do filme se expandem muito além dos esteriótipos, dando ao filme um refinamento humorístico muito superior às comédias americanóides, o filme inteiro você sorri, quando não sorri, morre de rir. Pessoalmente, achei a atuação de Julie Ferrier sensacional! É impossível não dizer: Micmacs é um charme, uma comédia minimalista perfeita, a bela arte do silêncio, coisa que muitos longa-metragens, em sua verborragia, não conseguem alcançar.O interessante é ver também como o contemporâneo é retratado no filme, os tons sépia e as técnicas de iluminação contribuem para um certo caráter atemporal, onde celulares e sites como youtube coexistem em uma realidade retratada ao som de Max Steiner e inúmeras máquinas enferrujadas e múltiplas engenhocas, o constante uso de tons marrons no figurino também remete a um estilo esteticamente próximo ao Steampunk.
      
O filme é simplesmente um deleite, tanto no sucesso ao criticar esta insana sociedade, como na estratégia magnífica e brilhantemente engenhosa de Bazil e seus companheiros para castigar os senhores das armas. Veredicto? O filme é excelênte! Sem mais comentários, é simplesmente excelênte!
       Il Viaggio di Capitan Fracassa e Micmacs à Tire-larigot são filmes orquestrados pelo entrelace de sentimentos, doces cores e as dores da existência. Os dois filmes, aliás, retratam um valor, que no meio de todos estes 'nós morais', cegueiras, cabos de guerra e balas perdidas, nunca deve ser perdido, a amizade.


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